quarta-feira, 30 de julho de 2014

Quem tem medo da agricultura ecológica? (I) artigo de Esther Vivas

A agroecologia é um sistema de produção agrícola alternativa que busca a sustentabilidade da agricultura familiar resgatando práticas que permitam ao agricultor pobre produzir sem depender de insumos industriais como agrotóxicos, por exemplo. – Charge por Latuff, no Humor Político.
A agricultura ecológica deixa alguns bem nervosos. É o que se constata, ultimamente, na multiplicação de artigos, entrevistas, livros que tem apenas o objetivo de desprestigiar seu trabalho, desinformar sobre sua prática e desacreditar seus princípios. Trata-se de discursos cheios de falsidades que, vestidos de uma suposta independência científica para se legitimar, contam-nos as “maldades” de um modelo de agricultura e alimentação que ganha progressivamente mais apoios. No entanto, por que tanto esforço para desautorizar esta prática? Quem tem medo da agricultura ecológica?

Quando uma alternativa é bem aceita socialmente, são duas as estratégias para neutralizá-la: a cooptação e a estigmatização. A agricultura ecológica é torpedeada por ambas. Por um lado, cada vez são mais as grandes empresas e os supermercados que produzem e comercializam estes produtos para atender a um florescente nicho de mercado e “limpar” a imagem, mesmo que suas práticas não tenham nada a ver com o que este modelo defende. Seu objetivo é cooptar, comprar, submeter e integrar esta alternativa ao modelo agroindustrial dominante, esvaziando-a de conteúdo real. Por outro lado, a estratégia do “medo” é estigmatizar, mentir e desinformar sobre a mesma, confundir a opinião pública, para assim desautorizar este modelo alternativo.

E se alguém levanta a voz em sua defesa? Sofre insultos e desqualificações. Se um cientista se posiciona contra a agricultura industrial e transgênica, é tachado de “ideológico”. Como se defender este tipo de agricultura não respondesse a uma determinada ideologia, a daqueles que se situam na órbita das multinacionais agroalimentares e biotecnológicas e que muitas vezes cobram das mesmas. Se um “não cientista” a critica, então, seu problema é que não sabe, que é um ignorante. De acordo com estes, parece que só os cientistas e, em particular, aqueles que defendem seus próprios postulados, podem ter uma posição válida a respeito. Uma atitude muito respeitosa com a diferença. Outra prática habitual é qualificar quem critica de “magufo”, sinônimo depreciativo, segundo a gíria desta “elite científica”, de anticientífico. Vê-se que defender uma ciência a serviço do público e do coletivo implica em ser contra ela. Uma argumentação de loucos.

Vejamos, na sequência, algumas das afirmações mais repetidas para desqualificar e desinformar sobre a agricultura ecológica, e que ampliaremos em artigos subsequentes. Porque há quem acredita que repetir mentiras serve para construir uma “verdade”. Contra a calúnia, dados e informação.

O perigo dos agrotóxicos

“A agricultura ecológica não é mais saudável nem melhor para o meio ambiente”, dizem. Querem nos fazer acreditar que uma agricultura industrial, intensiva, que usa sistematicamente produtos químicos de síntese em sua produção, é igual a uma agricultura ecológica que prescinde dos mesmos. Incrível. Se as práticas agroecológicas emergem é precisamente como resposta a um modelo de agricultura que contamina a terra e os nossos corpos.

Há anos, a retirada e proibição de fitossanitários, agrotóxicos, utilizados na agricultura convencional foram uma constante, após se demonstrar seu impacto negativo sobre a saúde do campesinato e dos consumidores e no meio ambiente. Talvez o caso mais conhecido seja o do DDT, um inseticida utilizado para o controle de pragas desde os anos 1940 e que, devido à sua alta toxicidade ambiental e humana e pouca ou nula biodegradabiidade, foi proibido em muitos países. Em 1972, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos vetou seu uso ao considerá-lo um “potencial cancerígeno para as pessoas”. Outras agências internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, entre outras, denunciaram também estes efeitos. Mesmo assim, quem mantém a afirmação inicial – aqui rebatida – mostra-se ainda, e mesmo que possa surpreender, partidário do DDT e o segue defendendo, apesar de todas as evidências.

No entanto, o DDT não é um caso isolado. Cada ano, produtos químicos de síntese utilizados na agricultura industrial são retirados do mercado pela Comissão Europeia. Sem ir mais longe, em 2012, o Tribunal de Grande Instância de Lyon concluiu que a intoxicação do camponês Paul François e as consequentes sequelas em sua saúde foram devidas ao uso e manipulação do herbicida Lasso, da Monsanto, que não informava nem sobre a correta utilização do produto nem sobre seus riscos sanitários. A própria Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) sentenciava no artigo Control of water pollution from agriculture, em 1996, que o uso de pesticidas na agricultura tinha efeitos negativos em vários níveis: 1) Nos sistemas aquáticos, já que sua alta toxicidade e a persistência de químicos degradava as águas. 2) Na saúde humana, pois a inalação, a ingestão e o contato com a pele destes produtos químicos incidia no número de casos de câncer, deformidades congênitas, deficiências no sistema imunológico, mortalidade pulmonar. 3) No meio ambiente, com a morte de organismos, geração de cânceres, tumores e lesões em animais, através da inibição reprodutiva, e a disrupção endócrina, entre outros. Que fitossanitários serão proibidos amanhã? Impossível saber. Até quando permitiremos continuar sendo cobaias?

Brincando com a saúde dos países do Sul

Capítulo à parte mereceria a análise do impacto destes agrotóxicos sobre a saúde das comunidades próximas às plantações onde são aplicados. Inúmeros foram os casos documentados, especialmente em países do Sul, onde seu uso é mais permissivo. Na Argentina, temos o conhecidíssimo caso das Mães de Ituzaingó, em Córdoba, em pé de guerra contra as fumigações nas plantações de soja ao redor da sua comunidade, e responsáveis pelo alto número de casos de câncer, malformações em recém nascidos, anemia hemolítica… que afetam a sua população. Em 2012, a Câmara I do Crime de Córdoba deu-lhes ganho de causa ao sentenciar que a fumigação com agrotóxicos era crime e seus autores foram condenados por contaminação dolosa.

Em vários países centro-americanos, o uso sistemático do Dibromo Cloropropano (DBCP) em plantações das Standard Fruit Company, Dole Food Corporation Inc., Chiquita Brands International foi o responsável por centenas de mortes, cânceres, deficiências mentais, malformações genéticas, esterilidade e dores por todo o corpo entre seus trabalhadores. Mesmo que, em 1975, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos considerasse a DBCP um possível agente cancerígeno, as multinacionais bananeiras continuaram a usá-lo. A lista poderia continuar com casos de comunidades afetadas pelo uso de agrotóxicos na Índia, Tailândia, Paraguai e muitos outros países. A agricultura industrial produz doenças e mortes, como demonstram os dados. Quem o negar, mente.

Se falamos de alimentação e saúde é necessário referir-se também ao impacto negativo de alguns aditivos alimentares (aromatizantes, colorantes, conservantes, antioxidantes, adoçantes, adensadores, realçadores de sabor, emulsionantes…) em nosso organismo. Está claro que desde as origens da alimentação existem métodos para conservá-la, e é fundamental que assim seja, caso contrário, o que comeríamos? Entretanto, o desenvolvimento da indústria alimentar generalizou o uso de aditivos químicos de síntese para adaptar a alimentação às características de um mercado quilométrico (onde os alimentos viajam grandes distâncias do campo ao prato), consumista (realçando desnecessariamente a cor, o sabor e o aroma dos produtos para torná-los mais apetecíveis) e que adoça artificialmente a alimentação, com produtos que deixam muito a desejar.

Do aspartame e do glutamato monossódico

Não se trata de colocar todos os aditivos no mesmo saco, mas assinalar o impacto que alguns podem ter em nosso organismo, especialmente os aditivos sintéticos, em comparação com os naturais. O livro Os aditivos alimentares. Perigo, de Corinne Gouget, assinala especialmente dois: o aspartame, codificado na Europa com o número E951, e o glutamato monossódico, com o E621.

O aspartame é um adoçante não calórico empregado em refrigerantes e comida “light”. Alguns estudos apontaram as consequências negativas que pode ter em nossa saúde. A Fundação Ramazzini de Oncologia e Ciências Ambientais, com sede na Itália, publicou, em 2005, na revista Environmental Health Perspectives os resultados de um exaustivo trabalho onde, a partir da experimentação com ratos, assinalava os possíveis efeitos cancerígenos do aspartame para o consumo humano. O informe concluía que o aspartame é um potencial agente cancerígeno, inclusive com uma dose diária de 20 miligramas por quilo, muito abaixo dos 40 miligramas por quilo de ingestão diária aceitos pelas autoridades sanitárias europeias. A Fundação Ramazzini concluía que era necessário revisar as diretrizes sobre sua utilização e consumo. No entanto, a Agência Europeia de Segurança Alimentar (EFSA, em sua sigla em inglês) omitiu estas conclusões e, seguindo a pauta habitual com os trabalhos científicos críticos, desautorizou o trabalho. Não esqueçamos os laços estreitos da EFSA com a indústria alimentar e biotecnológica e como, por exemplo, sua presidenta na Agência Espanhola de Segurança Alimentar é Ángela López de Sá Fernández, ex-diretora da Coca-Cola.

O glutamato monossódico, por sua vez, é um aditivo realçador de sabor muito utilizado em frios, hambúrgueres, misturas de condimentos, sopas, molhos, batatas fritas, guloseimas. Estes últimos, muito consumidos pelas crianças. Em 2005, o professor de fisiologia e endocrinologia experimental da Universidade Complutense de Madri, Jesús Fernández-Tresguerres, um dos 35 membros da Real Academia Nacional de Medicina, publicou nos Anais da Real Academia Nacional de Medicina os resultados de um longo trabalho onde analisava os efeitos da ingestão de glutamato monossódico no controle do apetite. As conclusões foram demolidoras: sua ingestão aumentava a fome e a voracidade em 40% e impedia o bom funcionamento dos mecanismos inibidores do apetite, o que contribuía para o aumento da obesidade e, a partir de certas quantidades, se considerava que poderia ter efeitos tóxicos sobre o organismo. Alguns chegaram a denunciar, informalmente, esta substância como “a nicotina dos alimentos”.

Além do aspartame e do glutamato monossódico, outros aditivos também se mostraram prejudiciais à saúde humana, e acabaram sendo retirados do mercado. Em 2007, a Comissão Europeia proibiu o uso do colorante vermelho 2G (E128), utilizado mormente em linguiças e hambúrgueres, ao considerar, depois de uma reavaliação da EFSA, que este poderia ter “efeitos genotóxicos e cancerígenos” para as pessoas. A avaliação toxicológica anterior foi realizada 25 anos atrás. Outros estudos assinalaram como a mistura de alguns colorantes, muitas vezes utilizados em refrigerantes e “guloseimas”, combinados com a ingestão de outros aditivos presentes por sua vez nestes produtos provocaria hiperatividade infantil. Assim concluía um estudo sobre aditivos alimentares publicado na revista The Lancet, em 2007: “As cores artificiais ou o conservante benzoato de sódio (ou ambos) na dieta provocam um aumento da hiperatividade em crianças de três anos e em crianças entre oito e nove anos”. O maravilhoso e duro documentário francês Nossos filhos nos acusarão, nos recorda, como assinala o seu título, a responsabilidade que temos.

A agricultura ecológica, ao contrário, prescinde destes aditivos químicos de síntese, colocando no centro da produção de alimentos a saúde das pessoas e do planeta. Quem pode considerar, visto o que foi visto aqui, que a agricultura e a alimentação industrial, intensiva e transgênica é mais respeitosa com as pessoas e o meio ambiente que a ecológica? Vocês decidem.

*Artigo publicado por Publico.es, 07/07/2014. Tradução: André Langer | Instituto Humanitas Unisinos.

**Esther Vivas, Colaboradora Internacional do Portal EcoDebate, é ativista e pesquisadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares, autora de vários livros, entre os quais “Planeta Indignado”. Esther Vivas é licenciada em jornalismo e mestre em Sociologia. Seus principais campos de pesquisa passam por analisar as alternativas apresentadas por movimentos sociais (globalização, fóruns sociais, revolta), os impactos da agricultura industrial e as alternativas que surgem a partir da soberania alimentar e do consumo crítico.


EcoDebate, 30/07/2014